31.1.05

Alvará de soltura

Ele virou o papel e me mostrou o título com o dedo indicador, para que eu lesse. Eu já havia lido, mas fingi que não. Dizia:

ALVARÁ DE SOLTURA

Perguntei, forçando naturalidade:

- Saiu agora?
- Acabei de sair. Tô limpo.
- Parabéns.
- É isso aí. Paguei o que devia para a sociedade.
- ...
- Agora eu tô livre. Não devo mais nada pra ninguém, tá ligado?

Tenho uma péssima mania. Aliás, duas, que se complementam. Sou curioso e não sei ficar de boca fechada:

- Quanto tempo?
- Quatro anos e oito, mas puxei dois e tô saindo fora.
- ...
- ...
- ...

Não precisei perguntar.

- Cento e cinqüenta computadores e trinta aparelhos de fax. Faltavam cinco quadras pra eu entregar a mercadoria e meter a mão na bolada. Deu zica.
- Caramba...

Nesse ponto eu já procurava um jeito de me esquivar do papo. Tava com o iPod ligado e lia um livro, tinha duas chances de escapar.

- Quanto tempo falta pra chegar em Campinas?
- Não sei, acho que...
- Porque de lá eu vou pra Sorocaba e depois quero ver se pego o baile funk em Santos.
- Ainda hoje?
- É, o baile vai até as quatro, cinco da manhã.
- Que pique, hein?
- Dois anos em reclusão, gordinho. Tá ligado?
- É, não deve ser fácil. Seu filho da puta, gordinho é o caralho.

Mas só disse a primeira frase, claro.

- Mas desculpa aí te atrapalhar, continua aí seu livro.
- 'Magina.

Virei a página anterior pra recapturar o fio da meada mas não deu tempo nem de ler a primeira frase.

- Paguei minha dívida, tá ligado? Quanto tempo falta pra chegar em Campinas?
- Não sei não, acho que a gente chega lá entre nove e meia e dez horas.
- Dez horas pra chegar em Campinas?!
- Não, vamos chegar a Campinas às dez. Vinte e duas horas, entendeu?
- Ah, bom. Qual é seu nome?
- Marcos.
- Prazer, Sérgio. - e me estendeu a mão tatuada.
- Prazer.
- Mas continua aí sua leitura.
- Valeu.

Enquanto tentava achar onde tinha parado, já que o livro se fechou e o marca-páginas ficara na minha mão, meu vizinho de assento abria o papel e o lia pela, sei lá, vigésima terceira vez. Foi por isso que pude ler do que se tratava muito antes dele me mostrar. Aquele sujeito inquieto ao meu lado, abrindo e fechando um papel e olhando para todos os lados não podia ser normal. Dei uma pescoçada básica no papel com o timbre do Estado em suas mãos e percebi: era um sujeito que acabara de sair da cadeia.

A viagem prosseguiu sem mais interpelações. Pelo menos até a próxima parada.

- Chegamos?
- Não, é só uma parada.
- Cinco minutos? - a ansiedade corroendo ele ali na poltrona.
- Quinze.
- E quanto tempo falta pra chegar em Campinas?
- Sei lá.
- Valeu.

Nesse momento me peguei sendo preconceituoso. Mas entenda, perceba minha situação. Na mochila aos meus pés estavam, além do iPod na minha mão: PowerBook (que peguei na assistência antes de viajar; ele ressuscitou novamente, é a terceira vida!), câmera fotográfica digital e alguns CDs queridos, mais algumas roupas.

E aí, o que você faria? Desceria do ônibus deixando seus pertences ao lado de um cara que acabou de sair da cadeia, onde estava preso por furto? Ou sairia arrastando a mochila, mostrando claramente o tamanho do seu preconceito (e medo)?

Decidi ficar sentado. Dava pra segurar o xixi por mais duas horas, pensei, me esquecendo que logo ali atrás ficava o banheiro do ônibus.

Mas ele também devia querer experimentar a sensação devolvida de liberdade, e quando o ônibus já estava vazio, praticamente só eu e ele sentados, ele se levantou e saiu. Saí atrás, quase conseguindo escutar minha bexiga chorando.

(Anotação mental: não beber cerveja antes de viajar. E a partir de agora cumprir essa promessa.)

Na volta do banheiro, de onde liguei para meu filho, dei de cara com ele.

- Foda, mano. Tô tentando falar com uma tia que mora em Sorocaba mas na casa da véia não aceita ligação a cobrar. Falta que faz um celular.

O bolso pareceu mais pesado do que nunca. O celular ali dentro parecia pegar fogo com a indireta dele. Procurei disfarçar e sentei num banco, em frente ao ônibus estacionado, o que fez com que o telefone no meu bolso aumentasse o volume por sob o tecido. Cruzei as pernas tentando disfarçar mais ainda, enquanto escutava seu comentário de que no xadrez ele tinhas três celulares à disposição.

- Dentro da cela? Mas não é proibido? - perguntei fingindo não saber que se pode tudo.
- Poder não pode, tá ligado? Mas cê tá ligado... - e sorriu.
- Só.

Meteu a mão no bolso e sacou uma arma, não, puxou um maço de cigarros, pegou um e me estendeu, oferecendo. Neguei, agradeci e já ia me preparando pra escapar quando ele voltou a falar:

- Tá ligado aquele outro maluco que tava lá na rodoviária? Vacilão. Tinha saído do xadrez junto comigo, mas tava devendo em outra cidade.
- É? - não sabia o que dizer, só pensava no livro me esperando.

E me explicou que o cara que tava com ele tinha saído e confessou querer pegar um táxi. Contou que ele negou que estivese devendo, mas se mostrou apreensivo enquanto esperava o ônibus chegar. Ensaiou diversas vezes entrar no único táxi parado na rodoviária daquela cidade minúscula. Mas como estava sem dinheiro nenhum, teria que "convencer" o motorista a levá-lo dali de graça. E desistiu. Um erro fatal, pois em seguida chegou uma viatura da polícia e de alguma forma acabou descobrindo que ele "estava devendo" em outra cidade, e que portanto teria que retornar ao xadrez para averiguação.

Pensei em perguntar como é que um cara que ainda "tá devendo" consegue sair da penitenciária, mas a vontade de voltar ao livro era maior. Só que não conseguia uma brecha sequer, os assuntos emendavam-se uns aos outros sem intervalo.

- O baile funk é da hora, tá ligado?
- É, tô ligado, Já fui em alguns no Rio.
- Mas lá em Santos é que o bicho pega. Só mina sarada.

E descreveu como o baile santista era bom. Que lá as minas fumavam um baseado na cara dos polícia e eles não faziam nada.

- Os coxinha ficam tudo pagando de peito empinado mas não podem fazer nada, tá ligado?
- Só.
- E lá não tem mulher feia. Só gostosa, só mulher sarada. E o som é ducaralho, tá ligado?

Será que eu explico pra ele que a onda funk já acabou, pelo menos em São Paulo?, pensei. Mas não disse, só queria sair dali rápido.

- É gordinho, só tem mulherão. Tu precisa ver.
- Onde fica?
- Em Santos.
- Sei, você já tinha dito. Onde em Santos?
- Numa discoteca.
- Ah...
- Bom pra caralho.
- Bom, o papo tá legal mas vou entrar pra continuar lendo meu livro.
- Vai nessa, gordinho.

Entrei, sentei, coloquei os fones na orelha e não olhei mais de lado até o ônibus entrar em Campinas, hora depois.

- Aê, gordinho, como é mesmo seu nome?
- Marcos.
- É isso aí, Marcos. Se cuida aí, tá ligado?

E me cumprimentou, um tapa na palma da mão e depois um soco de mão fechada. O cumprimento da moda. Tá ligado?

- Valeu aí, gordinho, Se cuida aí, valeu?
- Você também.
- Boa sorte.

E se foi.

Desejei boa sorte de volta, mas uma coisa ficou presa na garganta. Gordinho é a puta que lhe pariu.